segunda-feira, 9 de março de 2015

Canhoto do Cavaquinho


Canhoto foi um dos primeiros cavaquinistas a se tornar músico profissional através do rádio, atuando em grupos importantes para a consolidação de um modelo de acompanhamento através dos conjuntos regionais. Atualmente o músico é uma das principais referências para o cavaquinho na função de acompanhamento, tendo no repertório gravado muitos clássicos da música popular.


Waldiro Frederico Tramontano nasceu em 1908, no Rio de Janeiro, e foi um dos nomes mais importantes do cavaquinho brasileiro. Se Waldir Azevedo colocou o cavaquinho em lugar de destaque nos conjuntos de Choro, porque passou de instrumento acompanhador para solista, é o Canhoto o pilar central da escola do cavaco centro na música brasileira, principalmente o samba e o choro. Canhoto protagonizou, também, a história da criação dos conjuntos regionais, a formação instrumental que acompanhou a música brasileira ao longo de décadas. O regional surgiu dos trios de choro, formados por flauta, violão e cavaquinho, que alegravam as noites cariocas do final do século XIX e início do século XX. Foi na década de 1920, com o surgimento das gravações elétricas e do rádio, que se iniciou o processo de consolidação dos regionais. Como os programas do rádio eram ao vivo, os músicos que acompanhavam os cantores tinham que ser muito habilidosos, além de terem bom ouvido, e capacidade de tocar qualquer música sem ensaio, bastando, para tanto, saber o tom e combinar algum pequeno arranjo ou introdução. Os chorões eram excelentes nisso tudo, além, é claro, dos espetáculos que proporcionavam quando tocavam seus repertórios de choro. Foi assim, então, que o choro e os regionais ficaram muito próximos do samba e de outros gêneros da música brasileira que tocavam nos rádios. No início, a coisa funcionava mais ou menos assim: flauta, bandolim ou clarineta faziam a introdução e davam o tom para o cantor; cavaquinho e dois violões faziam harmonias e contracantos em terças ou sextas, e um discreto pandeiro marcava o ritmo ao fundo. Esse foi o embrião do regional. Foi em 1930 que surgiu o Gente do Morro, liderado pelo flautista Benedito Lacerda, e que tinha nosso Canhoto no cavaquinho. Desde o início, o Gente do Morro, que em 1934 passou a se chamar Regional de Benedito Lacerda, destacava-se no cenário musical brasileiro pela qualidade.



Em 1937, dois violões vieram engrandecer ainda mais o regional: Dino e Meira. Junto com Canhoto, eles formaram o mais importante núcleo de acompanhamento da música brasileira. O modelo de acompanhamento do regional tinha dois violões e cavaquinho, e distribuía as funções entre esses instrumentos: um dos violões fazia os acordes na região médio-aguda do instrumento, e o outro (ambos tinham seis cordas) fazia a baixaria. O cavaquinho fazia levadas rítmicas variadas, consagradas pela atuação brilhante do Canhoto, e o pandeiro passou a ter maior destaque. No final da década de 1940, juntou-se ao regional o saxofone de Pixinguinha, e disso resultaram os célebres contrapontos feitos por ele à flauta de Benedito Lacerda. Na década de 1950, com a saída de Benedito Lacerda, Canhoto assumiu a liderança do regional, e chamou Altamiro Carrilho para solista oficial do grupo. Então, durante anos, o Regional do Canhoto era: Altamiro Carrilho na flauta, Canhoto no cavaquinho, Dino e Meira nos violões, Orlando Silveira no acordeom e Gilson de Freitas no pandeiro. Posteriormente, saiu Gilson de Freitas e entrou Jorginho do Pandeiro. Em sua última formação, o flautista Carlos Poyares era o solista do regional. Essa formação se manteve até a década de 1980, com a morte de Meira e Canhoto. A formação instrumental dos regionais, de cuja história Canhoto é protagonista, confirma-se cada vez mais como a formação por excelência do Choro e do samba. Canhoto, por sua vez, é a referência fundante do cavaquinho acompanhador da música brasileira. O disco da postagem de hoje, embora não tenha ficha técnica, pela história do regional e pela data do disco (1960), tem Poyares na flauta, Orlando Silveira no acordeom, Dino, Meira, Canhoto e Jorginho. Ou seja, a nata da fina-flor do Choro brasileiro.
Destaco Homenagem à Vitória, de Carlos Poyares, e Chorei, de Pixinguinha e Benedito Lacerda.

Levadas:


Caracterização estilística e mapeamento rítmico das palhetadas
Assumimos o ponto de vista de que a escola antiga teria seus acompanhamentos mais ‘amaxixados’ e próximos ao ritmo do cinquillo – figura predominante nos acompanhamentos de cavaquinho no início do século XX. A partir dos pontos observados acima pudemos identificar a partir da audição de algumas gravações que Canhoto manteve algumas  característica desta escola em sua prática, porém com inovações rítmicas e melódicas. Vimos também que as formações utilizadas foram transformando-se ao longo dos anos assim como as funções dos instrumentos. Nas primeiras formações, cabia ao cavaquinho o acompanhamento harmônico e a manutenção rítmica, esta ficando mais flexível com a inserção do pandeiro e de outros instrumentos de percussão na década de 1920/1930. 
No âmbito harmônico destacamos o uso das fórmulas harmônicas: os acordes são simplificados e há predominância de tríades, sendo a sétima menor utilizada somente nos acordes de quinto grau (dominante). Os diminutos também são utilizados em tríades tendo a fundamental ou a quinta dobrada, em certos casos. Acordes mais dissonantes tem rara utilização, gerando uma harmonia sólida e funcional para melodia e contrapontos. Os acordes meio-diminutos na função de segundo grau nos tons menores (iim7/b5) são pouco utilizados, sendo mais comum o quarto grau (iv) do campo harmônico menor natural. Vimos no tópico anterior que o uso das fórmulas harmônicas por parte dos cavaquinistas e violonistas era natural devido estruturação formal das composições. As audições e outras informações recolhidas nas entrevistas revelaram alguns elementos no centro de Canhoto que nos soam diferente da sonoridade alcançada por outros cavaquinistas, sejam no âmbito da execução ou na sonoridade do instrumento.

Pelas informações que obtivemos Canhoto tinha três cavaquinhos dos quais dois foram fabricados pela Do Souto e outro era da marca paulista Del Vecchio dado de presente por Luiz Gonzaga em 1950. O instrumento mais utilizado pelo músico era um dos Do Souto, sendo um pouco mais fino do que o padrão utilizado em outros modelos da marca como o modelo Waldir (7,5 cm), por exemplo. Segundo o cavaquinista Mauricio Verde, o luthier Silvestre, responsável pela construção do instrumento, baseou-se nas medidas do primeiro cavaquinho de Canhoto, perdido em um incêndio na Rádio Nacional. Mauricio que utilizou o instrumento por alguns anos nos revela mais de sua sonoridade.

Ele gostava de usar cordas de violão, e palhetas de [casco de] tartaruga ou celulose, dependendo do propósito. O instrumento tinha uma sonoridade inigualável, simplesmente, um som todo por igual, levemente puxando pelo grave, por ser mais fino que o modelo Waldir. A madeira era pinho sueco [no tampo], com jacarandá no fundo e na escala. Um detalhe muito importante: esta sonoridade se dá por que o instrumento tinha muitos anos e a madeira estava bastante curtida, além do tampo ter
sido lixado algumas vezes, talvez por motivos de arranhão ou para refazer o verniz. Então o pinho estava muito fino, isto, dá uma sonoridade muito boa. (Depoimento de Verde ao autor, 2014)

O professor Cazes chama atenção para a relação desse modelo com o cavaquinho de Lisboa que não possuía leques harmônicos40, possibilitando a emissão de sons mais curtos e ritmados, preferíveis para a função centrista. A junção desses elementos aliados às palhetadas de Canhoto, além de uma grande integração sonora com os violões, a ponto de em certas gravações não ser possível diferenciar o que exatamente o cavaquinho executa. Esta característica é importante, em momentos onde era necessário ressaltar alguma passagem contrapontística do violão ou até mesmo trechos da melodia principal. Assim como muitos cavaquinistas mais antigos, Canhoto utilizava encordoamento para violão, porém não sabemos ao certo o intuito de sua escolha. Equilíbrio da sonoridade? Conforto? Maior durabilidade? Falta de encordoamentos específicos? Sabemos que as cordas para violão são
menos tensas que as especificas para os instrumentos, o que justificaria sua escolha em prol de um equilíbrio sonoro. Porém acreditamos que a durabilidade era o fator que mais influenciava no momento da escolha do encordoamento. Apesar das questões tecnológicas, o grande diferencial de Canhoto está na execução da mão direita, ou seja, das palhetadas. Outro cavaquinista influente para o cavaco-centro brasileiro foi Jonas Pereira da Silva, que foi integrante do conjunto Época de Ouro liderado por Jacob do Bandolim. Luciana Rabello nos contou em entrevista que o músico aprendeu a “centrar” com o próprio Jacob, segundo depoimento do bandolinista ao Museu da Imagem e do Som (MIS). Jacob por sua vez teria aprendido a fazer o acompanhamento com um cavaquinista chamado Carlos Gil, do qual não temos maiores informações. Jonas era solista e foi ensinado por Jacob a fazer centro. No disco Vibrações lançado em 1967 (RCA Victor BBL 1383) há na contracapa uma breve
apresentação dos músicos feita pelo próprio Jacob. Sobre Jonas ele diz: Jonas Pereira da Silva (n. 11/4/1934, Estado do Rio) é funcionário público em Niterói. Ótimo solista de cavaquinho, meu “centro” ideal, não toca “atravessado” e adapta, a cada número, palhetada adequada. Tudo isso ostentando linda mecha branca nos cabelos. (Jacob do Bandolim Apud Cazes, 1998).
Segundo Jacob o estilo de Jonas não teria padrões rítmicos intercambiáveis (para utilizar o termo de Sandroni, 2001) - ou seja, uma célula base como encontramos nos acompanhamentos de Canhoto - adaptando a cada música levada diferente. Jacob, como vimos, chegou a gravar com Canhoto na década de 1950 e pelo depoimento supõe-se que o estilo de Jonas o agradava mais do que o de Canhoto. Em uma gravação ilustrativa da atuação Jonas – a música Avenida Fechada de Elton Medeiros (gravada em 1973 pela Odeon – SMOFB 3820) – pudemos associar sua palhetada ao ritmo executado pelo tamborim, sendo estes os únicos dois instrumentos tocados na introdução da música. As variações da palhetada de Jonas durante a música são várias, porém chamamos a atenção para a sonoridade alcançada que parece ser mais seccionada. Identificamos a utilização de recurso de abafamento (stacatto de dedo), onde a mão esquerda deixa de apertar as cordas em alguns pontos específicos fazendo com que o som seja cortado eventualmente.



40 Pequenas peças de madeira localizadas na parte interior do tampo do instrumento com duas finalidades: estruturais (quando colocadas transversalmente à fibra da madeira) e ressonância (quando colocadas no mesmo sentido da fibra). No caso do cavaquinho, que tem um tampo pequeno, os leques tem dupla função tendo somente duas possibilidades de construção: três ou cinco barras.


Notas extraídas do brilhante trabalho elaborado por Jamerson Ribeiro